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23 / Os meta-gritos de Wes Craven / Novembro 2019

John Carpenter deu início de forma involuntária com O Regresso do Mal (Halloween, 1978) ao crescimento do sub-género do terror que viria a ficar conhecido como slasher. As grandes produtoras de Hollywood foram imediatamente atrás dos cifrões do sucesso sem precedentes da brilhante produção de baixos custos e altíssimos rendimentos que viu nascer Michael Myers. Sexta-Feira 13 (Friday the 13th, Sean S. Cunningham, 1980) foi o primeiro sucedâneo confeccionado para as grandes massas que deu origem a um infindável número de sequelas que viram nascer Jason Vorhees, um de três assassinos em série popularizados(!) nos anos oitenta, transformados em autênticos heróis e ícones da cultura popular. O terceiro vértice deste triângulo de figuras que marcaram o zeitgeist desta década, Freddy Krueger, foi, também ele, uma criação “acidental”: Wes Craven não tinha previsto o sucesso de O Pesadelo em Elm Street (A Nightmare in Elm Street, 1984), um filme muito pessoal, transformado em franchise pela New Line Cinema na peugada da popularidade crescente do género. É legítimo dizer-se que o realismo visceral da década de setenta deu lugar a fantasias de estética MTV em que o terror mainstream capitalizou com a exploração de (aparentemente) imortais assassinos psicopatas e pedófilos que assombravam os sonhos e as esperanças dos adolescentes incautos, deleitando-se com o vislumbre dos seus interiores e com o carmesim do sangue que jorrou abundantemente dos seus corpos mutilados. 

Apesar de Michael, Jason e Freddy arrastarem as suas carcaças (mais ou menos) putrefactas pela década de noventa adentro, quando Wes Craven finalmente regressou a Elm Street, aproveitou a oportunidade para comentar sobre o estado da indústria cinematográfica, nomeadamente do género que nunca conseguiu sacudir com sucesso, e da sua relação com os mitos que criara. O Novo Pesadelo de Freddy Krueger (Wes Craven’s New Nightmare, 1994) foi um brilhante e incompreendido exercício de reflexão metafísica que levantou o espelho não só aos criadores dos filmes de terror (na sequência do sucesso do slasher), como aos fãs que idolatraram estes monstros assustadores, retirando-lhes ameaça e, mais importante que tudo, relevância narrativa. Esta, no entanto, não foi a última palavra de Craven sobre o assunto. Numa tempestade perfeita de intenções, juntou-se em 1996 ao argumentista Kevin Williamson e à recém-criada Dimension Films, uma subsidiária dos irmãos Weinstein para cinema de terror fora da alçada da prestigiada Miramax, para a criação de Gritos (Scream). Sob a aparência de um típico filme slasher dos anos oitenta, com elenco jovem alinhado para a carnificina, Williamson ofereceu finalmente um filme de terror auto-consciente, ou seja, um filme de terror num universo onde filmes de terror existem e onde os adolescentes comentavam a sua própria representação no grande-ecrã.

Ao reconhecer o legado da cultura popular em que o próprio se inseria, Gritos pôde ter o bolo e comê-lo ao mesmo tempo. Ou seja, pôde comentar sobre os lugares-comuns do género ao mesmo tempo que os usava eficazmente. Na sequência do sucesso inesperado, a mesma equipa voltou imediatamente no ano seguinte para uma sequela. Além de estender as suas reflexões espirituosas à mecânica das sequelas, Gritos 2 (Scream 2) sublinha a sátira à indústria cinematográfica, às suas muletas narrativas e à forma como se relaciona com – e (des)responsabiliza dos – conteúdos temáticos que produzem para entretenimento. Este capítulo vem também marcar o início de uma nova tendência, fruto das tecnologias emergentes: a disponibilização e instantânea disseminação do guião na internet, obrigando a alterações narrativas em plena produção para despistar os fãs mais ansiosos. Entretanto, com Kevin Williamson ocupado com outros projectos, Ehren Kruger tomou as responsabilidades de escrita para o fecho da trilogia em 2000: Gritos 3 (Scream 3). Com segurança redobrada e finais alternativos filmados para baralhar os mais curiosos, este é um fechar de ciclo – inaugurado, na verdade, com O Novo Pesadelo de Freddy Krueger. O subtexto torna-se agora texto e o alvo são os abusos de poder em Hollywood e a capacidade da máquina dos sonhos para corromper vítimas inocentes. Apesar de menos bem recebido, será este um título visionário?

Nos anos que se seguiram a Gritos 3, o sucedâneo Destino Final (Final Destination, James Wong, 2000) deu origem a incontáveis sequelas, Hostel (Eli Roth, 2005) e Saw – Enigma Mortal (Saw, James Wan, 2004) deram o pontapé de saída ao torture porn – e este último deu origem a incontáveis sequelas –, Actividade Paranormal (Paranormal Activity, Oren Peli, 2007) roubou a coroa do found footage a O Projecto Blair Witch (The Blair Witch Project, Daniel Myrick e Eduardo Sánchez, 1999) e deu origem a incontáveis sequelas. Além disso, nenhuma das três figuras de proa do slasher entretanto mortas e enterradas no virar do milénio pôde dormir o seu sono eterno descansado: todos eles foram reanimados para realidades mais violentas e anacrónicas em remakes pouco memoráveis: Halloween (Rob Zombie, 2007), Sexta-Feira 13 (Friday the 13th, Marcus Nispel, 2009) e Pesadelo em Elm Street (A Nightmare on Elm Street, Samuel Bayer, 2010). Em resposta, Craven e Williamson voltaram a reunir-se para, estragando a redonda trilogia original, voltar a comentar com Gritos 4 (Scream 4) sobre o seu próprio legado, a evolução do género de terror na década que o antecedeu – com intermináveis sequelas e remakes –, e a relação dos fãs com este tipo de filmes violentos. Tudo isto sem descurar a crescente importância dos telemóveis, da internet e da quimera pela popularidade instantânea online, entretanto temáticas centrais da ignorada série televisiva Scream: The TV Series, estreada em 2015 na MTV.

António Araújo, Junho 2019. 

Fontes primárias

Cinema

O Novo Pesadelo de Freddy Krueger (Wes Craven’s New Nightmare, Wes Craven, 1994)

Gritos (Scream, Wes Craven, 1996)

Gritos 2 (Scream 2, Wes Craven, 1997)

Gritos 3 (Scream 3, Wes Craven, 2000)

Gritos 4 (Scream 4, Wes Craven, 2011)

Televisão

Scream: The TV Series (2015-2016, MTV; 2019- , VH1)

Fontes secundárias

Literatura

Bronsnan, J. (2000) Scream:Unofficial Guide Trilogy: The Unofficial Guide to the “Scream” Trilogy. London: Boxtree.

Robb, B. (2000) Screams and Nightmares: The Films of Wes Craven. New York: Harry N. Abrams.

Documentários

Still Screaming: The Ultimate Scary Movie Retrospective (Ryan Turek, 2011) (https://www.youtube.com/watch?v=Jc7npWd3Xpc)

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