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28 / O apetite insaciável do canibal de Thomas Harris / Abril 2020

Este foi o primeiro episódio do Universos Paralelos gravado à distância. Por motivos técnicos, tivemos de recorrer ao áudio de reserva captado directamente do Skype, pelo que o som não está à altura do habitual. Por isso pedimos desculpa e prometemos voltar em breve aos nossos padrões de qualidade.

Nascido a 22 de Setembro de 1940, pouco se sabe sobre o discreto Thomas Harris. Talvez os seus interesses enquanto romancista tenham tido a sua génese na cobertura de casos de polícia dos seus dias de jornalista. Black Sunday, um thriller psicológico publicado em 1975 em que um grupo terrorista planeia um assassinato em massa numa final do campeonato de futebol americano, foi apenas um sucesso mediano, recuperado dois anos mais tarde pela adaptação ao grande-ecrã pela mão de John Frankenheimer, Domingo Negro. O segundo romance, Red Dragon, de 1981, encontrou também o seu caminho até às salas de cinema num filme de 1986 produzido por Dino De Laurentiis e assinado pelo esteta Michael Mann: Manhunter, estreado em Portugal com três anos de atraso e com o título Caçada ao Amanhecer. Tanto livro como filme passaram relativamente despercebidos ao grande público apesar das críticas positivas ao anterior e do talento envolvido na produção do posterior. E, acima de tudo, não obstante conter a criação que moldaria a carreira do escritor e o panorama cinematográfico do decénio de 1990: o brilhante psiquiatra e assassino em série canibal Hannibal Lecter, nesta primeira versão cinematográfica com o nome alterado para Hannibal Lecktor numa breve e intensa criação do actor Brian Cox.

Aparecendo em 1988 como uma sequela de Red Dragon, The Silence of the Lambs retirava o protagonismo a Will Graham e colocava à boca de cena Clarice Starling, uma jovem cadete do FBI. Recuperando em parte a estrutura do romance anterior, recuperava também o seu elemento mais fascinante: o genial assassino atrás das grades Hannibal Lecter, tornado em relutante e manipulador aliado das forças policiais numa perseguição a um perigoso assassino em série. Agastado com o fiasco financeiro de Caçada ao Amanhecer, Dino De Laurentiis cedeu os direitos da personagem à Orion Pictures para uma planeada adaptação pela mão de Gene Hackman que não se chegou a concretizar. É difícil imaginar hoje o que teria resultado desta versão do projecto. A verdade é que se seguiu uma rara simbiose de talento na adaptação séria do que muitos poderiam considerar material menor. O guião de Ted Tally é fiel ao texto de Harris, filtrando os elementos não essenciais para uma narrativa eficaz e eficiente. Jodie Foster perseguiu o papel de Clarice pela afirmação de uma personagem feminina num mundo dominado por homens. A escolha improvável de Jonathan Demme para a cadeira de realizador encontrou um autor sintonizado não só com a perspectiva da sua protagonista como com a humanidade da história, revestindo-a da gravitas necessária ao horrível e degradante tema tão caro aos americanos, os assassinos em série. Finalmente, Anthony Hopkins encarnou com deleite Hannibal Lecter, transformando-se num ícone imediatamente reconhecível por conta da sua interpretação ao mesmo tempo charmosa e aterradora, num delicado número de corda-bamba entre o verosímil e o overacting. Silêncio dos Inocentes legitimou por instantes o género de terror junto do mainstream, e, sob uma chuva de protestos das comunidades transexual e homossexual pelo retrato do assassino Buffalo Bill, arrecadou incrivelmente e inesperadamente as premiações dos Óscares nas principais categorias: filme, realização, argumento (neste caso, adaptado), actor e actriz. Ainda assim, é impossível não destacar o trabalho de edição de Craig McKay, de fotografia de Tak Fujimoto e de composição musical de Howard Shore na criação de um clássico absoluto.

O sucesso descomunal de Silêncio dos Inocentes e a popularidade de Hannibal Lecter, elevado  na cultura popular ao pódio das criações vilanescas ficcionais, acabou por condicionar Thomas Harris. Só isso explica que o seu livro seguinte, altamente antecipado e publicado finalmente em 1999, tenha transformado o psiquiatra canibal, anteriormente um acompanhamento delicioso, no prato principal da refeição, dando inclusivamente o seu nome ao título: Hannibal. Dando continuidade ao romance anterior, coloca Clarice Starling no encalço do agora fugitivo Hannibal Lecter, alienando metade dos seus leitores no processo por causa do material mais lúrido que anteriormente. Incluindo Ted Tally, Jonathan Demme e Jodie Foster, que se recusaram a voltar para mais um filme a ser produzido pelo arrependido Dino De Laurentiis, à procura de recuperar os dólares que viu voar quando abriu mão da personagem agora tão popular. De Laurentiis começou por assegurar o mais importante: o regresso de Anhony Hopkins. Depois conseguiu o envolvimento de Ridley Scott, recém aclamado pelo sucesso de Gladiador. Finalmente, colmatou a ausência de Jodie Foster com a contratação de uma actriz igualmente capaz, Julianne Moore. Ainda assim, apesar do extraordinário trabalho de adaptação de David Mamet e Steven, e dos muitos milhões de dólares arrecadados na bilheteira, foi impossível disfarçar logo em 2001 o sentimento generalizado de desapontamento perante esta adaptação. Obviamente que, apesar disto, o consagrado produtor italiano não se deixou abater na sua demanda para fazer render a recuperada galinha dos ovos de ouro, e logo no ano seguinte decidiu voltar a filmar Red Dragon no contexto da composição de Hopkins para Lecter. No entanto, um elenco de excepção e o tarefeiro realizador Brett Ratner não foram suficientes para recuperar, onze anos depois, a “magia” do filme de 1991 a partir de um guião do também regressado Ted Tally. O resultado é uma revisitação morna e descaracterizada do que já tinhamos visto em Caçada ao Amanhecer, com o protagonismo de Hannibal Lecter a ser desta feita obviamente inflacionado.

Prova final da “prisão” de Harris à sua criação é o romance de 2006 Hannibal Rising. Alegadamente, terá sido a pressão de Dino De Laurentiis para a criação de uma prequela, com ou sem a colaboração do escritor, que o terá levado à escrita do livro e da própria adaptação ao cinema, numa história da génese do monstro Hannibal Lecter para matar de vez com algum mistério que pudesse ainda sobrar. O resultado, logo no ano seguinte, é um filme que ninguém pediu e muito poucos viram. Realizado por Peter Webb, Hannibal – A Origem do Mal viu o seu protagonista mudar novamente de cara, desta vez para a do jovem actor Gaspard Ulliel. Quando pensávamos ter sido este o último prego no caixão, eis que surge em 2013 o impensável. Uma excelente adaptação televisiva protagonizada pela canibal personagem, aqui reinventada pela singularidade da leitura de Mads Mikkelsen, repetindo o título singelo Hannibal. Esta criação de Bryan Fuller conseguiu a proeza de recuperar o tom de horror gótico sugerido a espaços pelos filmes, construindo macabros tableaux de grande beleza estética e horripilante violência gráfica enquanto incorporava nas suas narrativas ao longo de três temporadas elementos do folclore das obras que a precederam. Se antes nos parecia estamos de barriga cheia, perante o cancelamento de tal festim ficámos subitamente com fome por mais.

António Araújo, Março de 2020.

Fontes primáriasBibliografia

Harris, Thomas (1981) Red Dragon. Nova Iorque: G. P. Putnam’s Sons;

Harris, Thomas (1988) The Silence of the Lambs. Nova Iorque: St. Martin’s Press;

Harris, Thomas (1999) Hannibal. Nova Iorque: Delacorte Press;

Harris, Thomas (2006) Hannibal Rising. Nova Iorque: Delacorte Press.Cinema

Caçada ao Amanhecer (Manhunter, Michael Mann, 1986);

Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs, Jonathan Demme, 1991);

Hannibal (Ridley Scott, 2001);

Dragão Vermelho (Red Dragon, Brett Ratner, 2002);

Hannibal – A Origem do Mal (Hannibal Rising, Peter Webber, 2007);Televisão

Hannibal (Bryan Fuller, 2013-2015).

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