Quando pensamos na Inglaterra, no final do século XIX, evocamos imediatamente o nevoeirento romance gótico vitoriano, ou a emergência da consciência social dickseniana, com ruas geladas, velhos avarentos, fantasmas aristocráticos e pobres órfãos. Mas este era o tempo do socialismo de Marx, da revolução científica de Darwin, do positivismo de Comte, da psicanálise de Freud e do determinismo de Laplace, sendo ainda uma época em que a Inglaterra se arrogava de ter um Império que nunca via o por do sol, mas em que rebentavam guerras de independência, onde romantismo e nostalgia coexistiam com o entusiasmo do futuro trazido pelo racionalismo científico.
Fruto do seu tempo é Arthur Conan Doyle, um médico nascido em 1859, tirado das profundezas da Escócia, e de uma infância de rigor puritano, em que passou de órfão a self-made-man. Veterano de guerras coloniais, Conan Doyle aliou patriotismo e devoção mística ao seu espírito científico, gosto pela aventura e descoberta. O resultado foi uma escrita que ia do romance histórico napoleónico à aventura na descoberta de mundos perdidos, e àquela que seria a sua criação mais emblemática, o príncipe dos detectives: Sherlock Holmes.
Enquanto Londres se atemorizava com os crimes de Whitechapel, e a figura misteriosa de Jack o Estripador (1891), Conan Doyle dava-nos (a partir de 1887) uma personagem literária que nos vinha ensinar que, aplicando a dedução lógica, todo o crime pode ser solucionado, e todas as motivações podem ser determinadas. Como se a matemática fosse finalmente colocada ao serviço das preocupações sociais, ajudando a tornar mais habitável o caos que até aí fora a actividade humana.
É nesse optimismo racional, mesclado de centelha romântica, que nasce Sherlock Holmes, que Doyle nos traz em 4 romances e 56 contos, que constituem a matriz do romance de detectives que de então até hoje continua a captar fãs, primeiro na literatura, depois com a ajuda do cinema e da televisão.
Com uma escrita escorreita, não desdenhando algum sensacionalismo, e introduzindo a figura do narrador romântico, companheiro leal do detective, mas ao contrário dele, incapaz de deduzir e por isso um mediador ao nosso nível (modelo iniciado no fiel Dr. Watson), Arthur Conan Doyle deixou-nos um conjunto de histórias empolgantes, marcadas por casos bizarros, por vezes a roçar o horrífico, onde a frieza de um detective excêntrico, dado a momentos de uma quase sociopatia, faziam dele um super-homem intelectual de fraquezas mundanas, que nos guiava por exercícios mentais cuja recompensa era a resolução lógica, mas ao mesmo tempo surpreendente.
O modelo vingou, e proliferou. Da sua maior admiradora — Agatha Christie — a tantos escritores que se seguiram (G. K. Chesterton, Ellery Queen, Erle Stanley Gardner, Rex Stout, Ellis Peters, Dorothy L. Sayers, etc.), a literatura de detectives tornou-se uma das mais procuradas do século XX. Seguiram-se as adaptações, tantas vezes com actores a especializarem-se na sua versão de Holmes: do teatro, onde William Gillette começou em 1899, até ao cinema (Arthur Wontner, Basil Rathbone, Robert Downey Jr.), e depois à televisão (Peter Cushing, Jeremy Brett, Benedict Cumberbacht). Seguiu-se o uso do nome de Holmes como personagem de obras apócrifas que ainda hoje tentam compreender um homem que — relembremos, pois chega a parecer necessário — nunca existiu, mas que é a personagem ficcional mais vezes adaptada ao cinema.
Tenha-se ou não lido a obra de Conan Doyle, seja-se ou não especialista em Holmes, todos temos alguma noção de quem é este mestre dos detectives, e de como os seus métodos são infalíveis. Com duas séries televisivas actualmente a usar no nome de Sherlock Holmes, e uma tradição literária e televisiva que ainda usa os métodos de Doyle para contar histórias, chega a ser necessário questionar: é possível criar uma história de detectives sem parecer derivada de Holmes?
José Carlos Maltez, Agosto de 2018. Fontes primárias
Bibliografia canónica
Um Estudo em Vermelho (A Study in Scarlet, Dez/1887 – Beeton’s Christmas Annual)
O Sinal dos Quatro (The Sign of the Four, Fev/1890 – Lippincott’s Magazine)
As Aventuras de Sherlock Holmes (The Adventures of Sherlock Holmes, 1892 – The Strand Magazine)
As Memórias de Sherlock Holmes (The Memoirs of Sherlock Holmes, 1894 – The Strand Magazine)
O Cão dos Baskervilles (The Hound of the Baskervilles, 1901-1902 – em capítulos na revista The Strand Magazine)
A Volta de Sherlock Holmes (The Return of Sherlock Holmes, 1905 – The Strand Magazine)
O Vale do Medo (The Valley of Fear, 1914–1915 – em capítulos na revista The Strand)
Os Últimos casos de Sherlock Holmes (His Last Bow, 1917 – The Strand Magazine)
Histórias de Sherlock Holmes (The Case-Book of Sherlock Holmes, 1927 – The Strand Magazine)
Bibliografia apócrifa (selecção)
Sherlock Holmes: The Published Apocrypha (ed. Jack Tracy, 1980)
The Uncollected Sherlock Holmes (ed. Richard Lancelyn Green, 1983)
The Final Adventures of Sherlock Holmes (ed. Peter Haining, 2005)
The Apocrypha of Sherlock Holmes (ed. Leslie S. Klinger, 2009)
The Exploits of Sherlock Holmes (Adrian Conan Doyle, John Dickson Carr, 1954)
Adaptações ao teatro (selecção)
Sherlock Holmes (William Gillette, 1899 – em 4 actos)
The Final Adventures of Sherlock Holmes (William Gillette, 1905 – em 1 acto)
Baker Street (história: Jerome Coopersmith; música e letras: Marian Grudeff e Raymond Jessel, 1965)
Adaptações ao cinema (selecção)
The Return of Sherlock Holmes (1929, Basil Dean)
The Sign of Four: Sherlock Holmes’ Greatest Case (1932, Graham Cutts)
A Lenda do Cão Fantasma (The Hound of the Baskervilles, 1939, Sidney Lanfield)
Sherlock Holmes Contra Moriarty (The Adventures of Sherlock Holmes 1939, Alfred L. Werker)
O Cão dos Baskervilles (The Hound of the Baskervilles, 1959, Terence Fisher)
A Vida Íntima de Sherlock Holmes (The Private Life of Sherlock Holmes, 1970, Billy Wilder)
Processo Arquivado por Ordem Real (Murder by Decree, 1979, Bob Clark)
O Enigma da Pirâmide: (Young Sherlock Holmes 1985, Barry Levinson Nicholas Rowe)
Rato Basílio, o Grande Mestre dos Detectives (The Great Mouse Detective, 1986, Ron Clements, Burny Mattinson, David Michener, John Musker
As Desventuras de Sherlock Holmes: (Without a Clue, 1988, Thom Eberhardt)
Sherlock Holmes and the Leading Lady (1991, Peter Sasdy) (telefilme)
The Hound of the Baskervilles (2000, Rodney Gibbons) (telefilme)
Sherlock Holmes (2009, Guy Ritchie)
Sherlock Holmes: Jogo de Sombras (Sherlock Holmes: A Game of Shadows, 2011, Guy Ritchie)
Mr. Holmes (2015, Bill Condon)
Adaptações à televisão (selecção)
Sherlock Holmes (BBC, 1964–1968) [39 episódios]
The Adventures of Sherlock Holmes (ITV Granada, 1984–1994) [36 episódios]
Sherlock (BBC, 2010-?) [a decorrer]
Elementary (CBS, 2012-?) [a decorrer] Fontes secundárias
Bibliografia
Booth, M (2000) – The Doctor and the Detective: A Biography of Sir Arthur Conan Doyle. New York, NY: Minotaur Books.
Carr, J. D. (2003) – The Life of Sir Arthur Conan Doyle. New York, NY: Carroll & Graf.
Lycett, A. (2007) – The Man Who Created Sherlock Holmes: The Life and Times of Sir Arthur Conan Doyle. New York, NY: Free Press.
Vídeos
Entrevista de Arthur Conan Doyle (William Fox, 1927) (https://www.youtube.com/watch?v=8EOYl9Z0wB8)
Biography: Sherlock Holmes: The Great Detective (Peter Wain, 1995, Warner Brothers) (https://www.youtube.com/watch?v=eq0i4ktsgOc)