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32 / As caricaturas distópicas de Paul Verhoeven / Agosto 2020

É em RoboCop (1987) que a obra de Paul Verhoeven, o holandês que iniciou a sua carreira a fazer filmes para a marinha holandesa, inaugura, simultaneamente, o seu destaque junto do grande público (com duas nomeações e uma vitória por parte da Academia) e o conjunto temático que irá marcar esta trilogia.

Nos anos 80, em  plena América de Ronald Reagan, durante uma crise (sem fim) de políticos corruptos, violência nas ruas, crescimento do capitalismo desenfreado, crise económica, gentrificação, controlo dos media e aquela que dá, de certo modo, mote ao filme, a militarização da força policial, o realizador Paul Verhoeven – um desconhecido dos costumes e valores da sociedade americana, um estranho numa terra estranha -, juntamente com os argumentistas Ed Neumeier e Michael Miner constroem um perturbador comentário sociopolítico sobre essa América. Na pele do protagonista, Alex Murphy, o polícia tornado ciborgue, que procura a sua humanidade perdida, é-nos apresentado, talvez pela primeira vez no cinema, essa ideia da percepção do homem-máquina, um corpo transformado que passa a perceber o mundo de outra forma e que também se percebe a si mesmo de forma diferente (tema igualmente recorrente em Total Recall [1990]). Esta ideia de uma (trans)mutação encerra consequências ao nível da identidade e da essência de Murphy (ideia igualmente fracturante na questão das memórias e implantes em Total Recall), a quem é furtado uma ideia de humanidade substituída pela desumanização da máquina (lembremos a linha diálogo, após o atentado à sua vida, sobre o braço que perante a possibilidade de ser salvo não o é, pois apenas tornaria Murphy mais humano). Esta consequente modificação corporal desumaniza-o, torna-o numa máquina ao dispor corporativo, o processo de dessubjectivação não é mais que um de controlo, o exterior modifica o interior. É no meio de uma feroz sátira social contra a violência corporativa no controlo das liberdades pessoais que Murphy se começa a libertar da garra que o controla. Essa viagem de volta à sua humanidade não é mais que um processo de ressubjectivação e do desejo. O desejo de voltar a ver a sua família (como veremos em RoboCop 2 [1990]), passa pelo processo de se lembrar, de recuperar as suas memórias, como se estivessem na raíz da sua concepção pessoal, umeu dado pela reminiscência.

Transversal a esta ideia de homem-máquina encontramos (tal como nos outros filmes) uma proposta transumana. Esta ideia do super-homem (o além-homem) não está despojada da sua crítica como podemos ver pelas consequências desumanas que a máquina traz. Será esta forma de crítica, onde os mundos que nos são propostos são o nosso mundo, o mundo actual, presente, apenas com alguns pormenores vincados, ampliados, exacerbados até à caricatura que transforma esse presente num futuro sinistro, de contornos satíricos, que marca a forma destes três filmes, que faz repensar o papel, por exemplo, da violência “excessiva”, como apontado pela crítica. Será realmente excessiva? Parece, por outro lado, jogar um papel estilístico nestas distopias. Numa narrativa eficiente, despojada de desvios ao nível da trama, a mais eficiente da trilogia, qualquer excesso apenas pode ter um propósito. Será, a meu ver, o da caricatura, uma ilustração do grotesco enquanto tal, que serve de força motriz para o questionamento das temáticas aqui em causa.

Não é, portanto, inconsciente que Total Recall se debruce – porém de forma menos sintetizada, leva o seu tempo e escolhe desenvolver mais certas temáticas em detrimento de outras – sobre estas problemáticas. Uma continuação de RoboCop, tematica e cronologicamente, pois não é difícil imaginar os três filmes como pertencentes a um mesmo universo, narrados em tempos diferentes. Se a dominação corporativa no primeiro filme se cingia a um certo controlo de uma fatia do estado, do governo e da democracia, as forças policiais, neste o atentado à democracia corresponde à privatização de uma sociedade inteira, Marte. Aquilo que era implícito em RoboCop é (mais) explícito aqui. As memórias que moldam a nossa identidade tomam a forma literal de duas personagens, Hauser e Quaid, o agente secreto e o operário com sonhos de grandeza, respectivamente. Mas não é, à semelhança do polícia ciborgue, apenas uma questão de identidade, torna-se também uma questão de realidade. São as memórias uma ferramenta epistemológica viável da nossa vivência? Pode isto ser um sonho? Your whole life is just a dream. Ou You are not you. You are me. Existe uma multiplicidade de eus em cada momento, os efectivos (Hauser e Quaid) e todos os potenciais, virtuais, que se encontram no espectro entre esses dois. Será desse espectro que emerge o personagem com que o filme encerra: já não é Quaid (pois recuperou as suas memórias, uma total recall, uma rememoração completa), mas também se recusa (é tal como em RoboCop uma questão de desejo, de liberdade subjectiva) a ser Hauser e a questão final de se isto tudo pode ser um sonho, deixa de ser relevante, os factos empíricos são tão falíveis como as memórias, porque escolhemos as que querem moldar a nossa identidade.

É apenas em Starship Troopers (1997) que encontramos o apogeu da sátira e da caricatura distópica. Neste universo qualquer tentativa de construir uma democracia é esquecida. Se em Total Recall a revolução social teve os seus frutos em Marte, neste filme a revolução não existe, a sociedade totalitária e distópica é-nos dada como utópica. Os personagens são tipificados e perderam qualquer contorno de humanidade muito antes do filme terminar, não existe nenhum caminho ou viagem da desumanização para humanização, uma procura pelo eu, como vimos nos outros dois filmes. São modelos perfeitos (em aparência e carácter), são máquinas de guerra. A falência da democracia, às mãos de uma sociedade bélica, regida pelos militares, é total. À semelhança de sociedades totalitárias da História apenas um grupo elegível de pessoas pode votar, por exemplo, o direito máximo do cidadão (em oposição ao civil). Mas essa característica é apenas o início de um discurso irónico, característica máxima desta narrativa, pois o voto tem uma validade nula (o espectador desconhece a sua utilidade, portanto é, como todo o filme, uma ferramenta de propaganda), na medida em que existe apenas uma maneira de sair desse regime militar, morrendo. Tal como a guerra, o alistamento é eterno.

Porém não é de guerra que o filme fala, mas sim, antes de mais, de uma imagem da guerra. Todo o filme é-nos apresentado sob a forma de publicidade e propaganda, anúncios, notícias, como imagens da realidade que são tomadas como a realidade, a realidade – não muito diferente da maneira como vivemos a nossa, fora do grande ecrã – é construída por discursos e por imagens.

Estas formas de controlo, que encontramos nos três filmes, têm, acima de tudo, um propósito, (re)construir a História e reorganizar narrativas.

Tomás Agostinho, Agosto de 2020.
Fontes primáriasCinema

Robocop – O polícia do futuro (RoboCop, Paul Verhoeven, 1987) ;

Desafio Total (Total Recall, Paul Verhoeven, 1990) ;

Soldados do Universo (Starship Troopers, Paul Verhoeven, 1997) .

Literatura

Heinlein, Robert A. (1959) Starship Troopers. New York City, NY: G. P. Putnam’s Sons [traduzido em português como “Soldado no Espaço” – Livros do Brasil, colecção Argonauta: nº 129; e Soldados do Universo – Editorial Notícias, colecção Literatura e Cinema];

Dick, Philip K. (1966) We Can Remember It for You Wholesale. in The Magazine of Fantasy & Science Fiction. Hoboken, NJ: Spilogale, Inc. [traduzido em português como “Recordações por Atacado” em “A Máquina Preservadora – 1” – Livros do Brasil, colecção Argonauta: nº 387].

Fontes secundáriasCInema

RoboCop

RoboCop 2 (Irvin Kershner, 1990);

RoboCop 3 – Fora da Lei (RoboCop 3, Fred Dekker, 1993);

RoboCop (José Padilha, 2014).

Total Recall

Desafio Total (Total Recall, Len Wiseman, 2012).

Starship Troopers

Soldados do Universo 2: O Herói da Federação (Starship Troopers 2: Hero of the Federation, Phil Tippett, 2004);

Starship Troopers 3 (Starship Troopers 3: Marauder, Edward Neumeier, 2008);

Starship Troopers: Invasion (Shinji Aramaki, 2012);

Starship Troopers: Traitor of Mars (Shinji Aramaki, Masaru Matsumoto, 2017).

Televisão

RoboCop

RoboCop (1988, Marvel Productions) [12 episódios];

RoboCop (1994, Rysher/SkyVision/Rigel) [22 episódios];

RoboCop: Alpha Commando (1998–1999, MGM Animation) [40 episódios];

RoboCop: Prime Directives (2001, Fireworks/MGM) [4 episódios].

Total Recall

Total Recall 2070 (2001, Alliance Atlantis) [22 episódios].

Starship Troopers

Starship Troopers (1988, Sunrise) [6 episódios];

Roughnecks: Starship Troopers Chronicles (1999–2000, Verhoeven-Marshall) [36 episódios].

Banda Desenhada

RoboCop (algumas referências)

Miller, Frank; Simonson, Walt (1992) RoboCop Versus The Terminator. Milwaukie, Oregon: Dark Horse Comics;

Grant, Steven; Ryp, Juan Jose (2003 – 2006) Frank Miller’s RoboCop. Rantoul, Illinois: Avatar Press;

Coelho, Jorge; Wood, Brian (2018) RoboCop: Citizens Arrest. Los Angeles, California: Boom! Studios.

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