Quando, a 12 de Setembro de 1962, o presidente norte-americano John F. Kennedy proferiu o famoso discurso no qual prometia, até ao final da década, colocar um homem na Lua, estava não só a trazer uma desejada lufada de optimismo à sociedade do seu país, como a fazer com que uma nova geração olhasse para a exploração espacial como algo bem mais tangível do que até aí a incipiente ficção científica de então deixara adivinhar.
Se, no papel, essa ficção científica tinha gerado obras hoje consideradas clássicas — de Jules Verne a H. G. Wells, por exemplo —, no cinema a situação era diferente. Aí, a ideia de exploração espacial era mais devedora de space-operas que seguiam as heróicas aventuras de Flash Gordon, Buck Rodgers e John Carter, as primeiras duas serializadas para o grande ecrã. O pós-guerra trouxe uma sensibilidade diferente — e mais negativa — sobre a ciência, que no cinema se traduziu em catastróficas invasões extra-terrestres e terríficos ataques de monstros mutantes (com as notáveis excepções de Planeta Proibido e Destination Moon). Mas ainda faltava algo para que o cinema levasse a ciência a sério, tentando envolver-se na corrida espacial, adivinhando e resolvendo os problemas que se deparariam à NASA.
Entre as muitas pessoas que não deixavam de pensar no assunto por um segundo, estava Arthur C. Clarke, um cidadão britânico nascido em 1917, formado em física e matemática, e que, ao invés de seguir uma carreira académica, foi como diletante que deixou a sua marca (desde o momento em que ajudou a montar a rede de radares de defesa britânica durante a Segunda Guerra Mundial), organizando clubes de ciência e escrevendo para revistas, com trabalhos de grande qualidade, um dos quais o terá creditado como peça importante da teoria por detrás do uso de órbitas geoestacionárias para satélites de telecomunicações. Mas a paixão de Clarke era a escrita ficcional, veículo onde podia dar largas à imaginação, encontrando campo onde desenvolver e especular, onde a física, com as suas possibilidades e limitações, era sempre o ponto de partida.
Com 11 dos seus mais de 30 romances (a que se juntam dezenas de contos) já publicados, Arthur C. Clarke foi interpelado por Stanley Kubrick, que o queria usar como argumentista de um filme de exploração espacial, que tratasse a ciência seriamente, servido de efeitos especiais ímpares. O casamento Clarke-Kubrick resultou na perfeição, e a partir de ideias presentes nalguns contos do primeiro — como Encounter at Dawn e The Sentinel —, o duo desenvolveu 2001: Uma Odisseia no Espaço, num processo provavelmente único em que livro e filme foram trabalhados em paralelo, não sendo um sucedâneo do outro.
Com a conquista espacial, os pormenores dos desafios dela inerentes (os próprios astronautas do programa Apollo mais que uma vez referiram o filme como algo que eles pareciam estar a imitar), os perigos da inteligência artificial, a relação do homem com o transcendente e todos os mistérios que o universo ainda nos irá colocar, Clarke e Kubrick conquistariam o mundo, numa obra incontornável na sua importância na história do cinema e da ficção científica em geral. A precisão e imaginação de Clarke, aliadas à visão, estética e técnica perfeita de Kubrick, resultaram num filme que ainda hoje é o padrão pelo qual todas as obras cinematográficas de ficção científica se medem, para lá de nos dar um conjunto de momentos icónicos que todos conhecemos, e o mais célebre computador da história da ficção: o infame HAL 9000.
O sucesso resultou também na apreciação do livro que surgiu pouco depois do filme, e que ajudou a cimentar o estatuto de Arthur C. Clarke como um dos chamados “Big Three” da literatura de ficção científica (a par de Robert A. Heinlein e Isaac Asimov), e levou a que, em 1982, surgisse a sequela literária 2010: Segunda Odisseia. Esta foi imediatamente adaptada ao cinema, por Peter Hyams, já sem a pretensão estética de Kubrick, resultando num filme interessante, onde os ecos da era-Reagan alteravam o tom da história original, a qual trazia uma curiosa colaboração entre EUA e URSS a bem do futuro da humanidade.
Sem o mesmo impacto do filme original, 2010: O Ano do Contacto (1984) voltava a especular sobre o facto de estarmos ou não sós no universo, mas terá chegado num momento em que o mundo do cinema tinha outras preocupações temáticas. Tal não impediu Arthur C. Clarke de continuar a cuidar deste seu universo onde monólitos negros fazem um estranho contacto com a Terra, trazendo mensagens sobre vida noutros planetas, alterando a ordem do Sistema Solar e fazendo-nos sonhar com a exploração espacial, tal a escrita escorreita de Clarke e o seu modo de nos dar aulas de física em exemplos concretos bem simples, em que até aí nunca pensáramos.
Surgirão assim mais dois livros, 2061: Terceira Odisseia (1987) e 3001: Odisseia Final (1997), estes nunca adaptados ao cinema, e que, de um modo cientificamente bem mais especulativo que os dois primeiros, apontam um futuro possível para a espécie humana, onde o contacto extraterrestre veio reorientar as prioridades do nosso planeta, fazendo-nos ultrapassar muitos erros e levando-nos a conquistar o Sistema Solar.
Com um imaginário ainda muito em aberto, e que continua a fascinar todos os que o descobrem, hoje parece-nos triste apenas que o ano de 2001 já tenha passado há quase duas décadas e a nossa condição como espécie inteligente pareça muito atrás daquilo que Clarke e Kubrick nos vaticinaram. Mas a NASA voltou recentemente a relançar o regresso à Lua. Estará lá um monólito negro à nossa espera?
José Carlos Maltez, Setembro 2019.
Fontes primárias
Literatura
Clarke, Arthur C. (1948) The Sentinel. [inicialmente publicado na revista 10 Story Fantasy]
Clarke, Arthur C. (1953) Encounter at Dawn. [inicialmente publicado na revista Amazing Stories]
Clarke, Arthur C. (1968) 2001: A Space Odyssey. London: Hutchinson. [Tradução portuguesa por Publicações Europa-América]
Clarke, Arthur C. (1982) 2010: Odyssey Two. London: Granada Publishing Ltd. [Tradução portuguesa por Publicações Europa-América]
Clarke, Arthur C. (1987) 2061: Odyssey Three. London: Del Rey Books. [Tradução portuguesa por Publicações Europa-América]
Clarke, Arthur C. (1997) 3001: The Final Odyssey. London: Ballantine Books. [Tradução portuguesa por Publicações Europa-América]
Cinema
2001: Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey, Stanley Kubrick, 1968)
2010: O Ano do Contacto (2010: The Year We Make Contact, Peter Hyams, 1984)
Fontes secundárias
Literatura
Agel, J. (ed.) (1970) The Making of Kubrick’s 2001. New York City, NY: Signet Books.
Clarke, A. C. (1972) The Lost Worlds of 2001. New York City, NY: New American Library.
Hughes, D. (2001) The Complete Kubrick. London: Virgin Books.
Benson, M (2018) Space Odyssey: Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke, and the Making of a Masterpiece. New York City, NY: Simon & Schuster.
Documentários
Standing on the Shoulders of Kubrick: The Legacy of “2001: A Space Odyssey” (Gary Leva, 2007) (https://www.youtube.com/watch?v=gW7-VnIqKhM)
Outras referências
Literatura
Clarke, Arthur C. (1953) Expedition to Earth. London: Ballantine Books. [Tradução portuguesa por Publicações Europa-América]
Clarke, Arthur C. (1986) The Songs of Distant Earth. London: Grafton Books. [Tradução portuguesa por Publicações Europa-América]
Cinema
Estrada do Inferno (Countdown, Robert Altman, 1967)
Perdidos no Espaço (Marooned, John Sturges, 1969)
Solaris (Solyaris, Andrei Tarkovsky, 1972)
Estrela Negra (Dark Star, John Carpenter, 1974)
O Caminho das Estrelas (Star Trek: The Motion Picture, Robert Wise, 1979)
Contacto (Contact, Robert Zemeckis, 1997)
O Enigma do Horizonte (Event Horizon, Paul W.S. Anderson, 1997)
Missão a Marte (Mission to Mars, Brian De Palma, 2000)
WALL·E (Andrew Stanton, 2008)
Gravidade (Gravity, Alfonso Cuarón, 2013)
Europa Report (Sebastián Cordero, 2013)
Uma História de Amor (Her, Spike Jonze, 2013)
Interstellar (Christopher Nolan, 2014)
Primeiro Encontro (Arrival, Denis Villeneuve, 2016)
Televisão
Arthur C. Clarke’s Mysterious World (1980, ITV)
Nightflyers (2018-2019, Syfy)